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quarta-feira, maio 19, 2010

O riso como via de acesso ao criativo transformador (texto sagrado do Delarismo) - parte 1

“O grau de liberdade que há em qualquer sociedade é diretamente proporcional ao riso que nela existe”

(Zero Mostel, in Humor Judaico)

...

O palhaço foi considerado por C. G. Jung como um representante do trickster, uma figura arquetípica do herói trapaceiro, ambíguo e contraditório, que zomba e transgride normas. O palhaço teria ligações estreitas com o trickster e seria, acima de tudo, uma exteriorização de algo íntimo, universal, primitivo e puro do indivíduo, que se encontra no riso e no exagero. Figura que pode ser amada, admirada ou temida por todos, que assume a dor, a ternura e o ridículo, integrando estes opostos.

Fazendo uma breve retrospectiva histórica do “palhaço”, encontramos já na Idade Média as figuras do bobo da corte ou bufão sábio. A trupe dos saltimbancos surgiu nas festividades da Idade Média e Renascimento. Nesta época, a concepção do cômico opunha-se à cultura oficial, ao tom sério, feudal e religioso da época. Encontramos esta figura cômica também como o “coringa” dos baralhos e como o “louco”, na carta 22 do Tarô. Somente se tornou realmente a figura do “palhaço” na Renascença italiana com a Commedia dell’ arte ( com a dupla “Branco e Augusto”). Passou a frequentar os palcos das festas populares, representando uma “concepção carnavalesca do mundo, uma segunda vida do povo”, assim como o lado jocoso, grotesco e alegre, recusando o poder instituído e afirmando a vida (Bakhtin, apud Sampaio, 1992, p.40). Surge, assim, uma visão do homem e das relações humanas alternante, necessária e revigoradora. Mas, este poder regenerador positivo do palhaço vai decrescendo após o século 17, mantendo-se atenuado em algumas formas do cômico sobreviventes, ligadas ao folclore, ao circo e à feira.

O trickster é considerado por Jung uma imagem arquetípica do inconsciente coletivo, que se insurge para brincar com a lei. É uma imagem eterna, arquetípica. Um herói mítico que é solitário, mas que se efetiva na relação com o outro, embora se volte sempre para si. O trickster é a imagem arquetípica do brincalhão com impulsos infantis, de natureza ambígua (animal e humana, sublime e grotesca). É o infantil no adulto, o infrator de normas.

(...)

Investigando o espírito cômico, observamos que ele é dialético, costuma dizer “não” a um “sim” aceito, ou dizer “sim” a um “não“ aceito e conservado culturalmente. Tem a capacidade de criar a súbita inversão, na qual a familiaridade do mundo comum é posta em questão, para que possamos ver a surpresa e experimentar o espanto que o familiar tende a esconder. A piada, por exemplo, depende muito de uma espontânea e súbita inversão do comum, da conserva cultural, da ordem das coisas geralmente aceitas. Por isto, há um certo atrativo inevitável na brincadeira.

Segundo Richard Underwood (apud Campbel, 2001, p. 166), “é cômico ver a súbita inversão da certeza ou familiaridade em incerteza ou surpresa”. Ou até pode ser trágico, indicando uma íntima ligação dialética entre tragédia e comédia. Como diz um velho cancioneiro popular, “o que dá pra rir dá pra chorar, questão só de peso e medida”.

J. L. Moreno (1889-1974), criador do Psicodrama, tinha plena consciência da força da brincadeira, da alegria e do jogo no trabalho terapêutico. Afirmou que devolveu a alegria à Psiquiatria e buscou no jogo, dramático ou não, o clima lúdico e o riso como condições para promover um estado espontâneo-criador, que ele considerava condição fundamental à saúde mental. Diremos que Moreno desenvolveu um método que visava também despertar o espírito cômico, com seu caráter transformador e transgressor, para que o sujeito com ele pudesse rir do seu drama, ver além da sua tragédia, além do seu modus operandi submerso e submetido às conservas culturais, a atitudes e padrões estereotipados.

Moreno deu, assim, credibilidade e valor à brincadeira como via de acesso ao poder criativo, e em especial no seu poder de colocar em questão o familiar, o conservado, desmontando “certezas”, princípios ou objetivos fixos, cristalizados e não questionados. Vai buscar na atitude lúdica a sua força criativa, para desmontar, desorganizar ou destruir certezas absolutas, pesquisando suas origens, numa perspectiva também genealógica.

(...)

Destacamos também a perspectiva dionisíaca presente do Psicodrama e na figura do palhaço. Dioniso, deus mitológico grego, é um deus do povo, da natureza, do vinho, da liberação pelo êxtase, das emoções, da promoção da vida, da não repressão, da expressão corporal, da dança, do teatro, do sexo e da alegria. Em seu lado sombrio, é o deus da tragédia e da loucura. Mas, é este deus que promove uma via de acesso ao mundo interior, a união das dualidades, do princípio masculino com o feminino, da luz e da sombra, do divino e humano, do alegre e triste, do bom e mau.

Na mitologia e na tragédia grega, é Dioniso quem aponta para a condição humana, que nos vem ensinar o mesmo que os poetas sempre transmitiram, que a vida é um jogo de pares de opostos, são parte de uma unidade permanente. Segundo Albor Reñones (2002, p. 148), “por trás de cada herói e cada sofrimento, ali estaria o deus Dioniso, apontando seu bastão para a nossa cara e dizendo: dance”. Para combater os excessos e a falácia da seriedade, aponta para a dança, para a permissão da alegria e da embriaguês, pois o mundo dá voltas e nada permanece, devendo a cada um de nós entendê-lo como passagem. Este autor (Ibidem, p. 156) nos aponta: “ante a insolubilidade da dor, temos a possibilidade de uma ação solidária, quando não amorosa”. Diríamos que nos resta a poesia, que está presente na alegria.

Segundo López-Pedraza (2002, p.44-45), “Dioniso permite uma perspectiva arquetípica para se relacionar e para diferenciar emoções, como uma via de acesso ao mundo interior”. Segundo Alvarenga (2000, p.143) Dioniso “prega a interação eu-outro de forma simétrica, restituindo a dinâmica do coração”. Dioniso é entendido com representante do arquétipo canalizador da agressividade, da força ou da corporalidade, transformando-a em manifestações criativas. Ao contrário de Apolo (deus do sol, da consciência, da ordem e do pensamento, defensor do patriarcado), Dioniso defende o feminino, é o deus lunar, do inconsciente, da intuição e do sentimento. Representa a dinâmica da alteridade, das relações simétricas, pós-patriarcal (Sousa, apud Alvarenga, 2007).


Parte 2


fonte: Psicodrama do Palhaço

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