Foi num piscar de olhos tão veloz e sutil como um piscar de olhos que a consciência foi de supetão arrastada para os túneis, calçadas e edificações de uma multitude complexa de fragmentos provindos de imagens que só poderiam existir em sua totalidade e integridade nos âmbitos sinuosos da inconsciência. A mente, que raciocinava sem processar o óbvio, via através de seus olhos oníricos e etéreos o correr de um tempo rápido e intrincado, que não reconhecia vírgulas e muito menos ainda pontos finais, essenciais a (quase) todo texto. O desenrolar dos fatos, atos e reconhecimento de retratos de outro mundo dava-se de forma extremamente acelerada, ao ponto de que nem mesmo os próprios ocorridos e acontecimentos tinham tempo de ocorrer: começava um e logo chegava outro, a se empurrar e esparramar por todos os cantos da inconsciência seus pequeninos acontecimentozinhos, uns filhotes tão problemáticos quanto os problemas maiores.
Se em um simples e mínimo estalar de dedos eram os olhos físicos que encaravam a penumbra do recinto físico, em um movimento igualmente rápido a função de enxergar seria transferida aos olhos de dentro da cabeça, ou quiçá os olhos d'alma: a ausência relativa de luz rapidamente se transformara em um ônibus comprido e amarelo, vazio e repleto de lugares. Não se sabia para onde ia o ônibus, mas o dono dos olhos que não reconheciam a surrealidade da transição de momentos sequer parecia se importar com tal rompimento espaço-temporal; ao invés disso, preferia olhar para a rua solitária que o veículo seguia em um final de tarde roxo e quente. Parecia ser algum típico dia de verão, naqueles horários onde os últimos raios solares incidem sobre as superfícies de forma um tanto quanto melancólica.
Mas a calma não duraria para sempre, não! A paz trazida à alma do indivíduo fora rompida por algum passageiro mal educado cuja presença aparentava ter surgido sabe-se lá de onde e repentinamente. Era um adolescente. Um adolescente incômodo e espinhento. Tinha os pés encostados no banco à frente de si, deixando as pernas um tanto quanto arqueadas e sua coluna em uma posição um tanto quanto estranha, talvez um tanto quanto propositalmente escoliótica. Edgy points, sim. Com certeza. Não só sua linguagem corporal demonstrava isso, como também suas vestimentas de péssimo gosto (imagine aqui algo como alguma besourona juvenil que, de um dia para o outro, decidiu adotar a escuridão após ouvir alguma coisa MEDONHA como My Chemical Romance) e, mais ainda, a música irritante e altíssima que estourava os tímpanos e os fones de ouvido brancos do jovem.
E de repente, corte. Os olhos já não se viam mais no ônibus amarelo e o jovem havia desaparecido completamente. O que se via agora era um carro que aparentava ser dos anos noventa, algo como um Volkswagen. O espectador via-se agora passageiro de algum motorista não identificado, que o deixara em algum cemitério extremamente velho e repleto de suntuosos mausoléus cinzentos com estátuas de ouro, tudo respeitosamente cercado e demarcado por arbustos caprichosamente podados de forma a ficarem quadrados e simétricos. Sem pensar duas vezes, os olhos inconscientes andaram em direção ao complexo fúnebre que era belíssimo e um tanto quanto grotesco. Cemitério, cemitério. Os cemitérios -ou melhor, o cemitério- sempre dá as caras em algum momento, quando se comemora silenciosamente a respeito de sua ausência no mundo onírico.
Corte novamente. O que se via agora era o chão xadrez de um mausoléu gigantesco e aberto, tendo sua respectiva tumba posta ao centro de todo o espaço que, por sua vez, encontrava-se no topo de um penhasco altíssimo (detalhe: o lado que guardava o penhasco fora propositalmente construído em forma de sacada). Tal como quase todas as casinhas de defunto daquele cemitério, aquela também tinha sua estátua de ouro e esta era enorme. Mulher de túnica, cabelos longos e um vaso em mãos. Encarava as faces do penhasco, como se vigiasse o horizonte verde e um tanto quanto monocromático daquele lugar desconhecido e enigmático.
Repentinamente o indivíduo viu-se ao lado da estátua. Era mais uma transição grosseira entre fragmentos. Agora, havia uma turista de sobretudo preto e cachecol vermelho ao seu lado: segurava um celular animadamente e pedia aos olhos que tirassem uma foto de si com a majestosa e tristonha paisagem que podia ser vista do mausoléu-sacada. A turista sorria e seus cabelos escuros caíam de seu coque malfeito. Foram algumas vinte e poucas fotos repletas de poses dignas de visitantes exibidos que, obviamente, já estavam a irritar o fotógrafo "contratado" através de sua própria boa-vontade e gentileza, até o momento que um estouro próximo e alto foi ouvido. A turista, em toda sua jacuzice, foi ao chão devido ao susto e seu "fotógrafo particular" virou para trás velozmente, deparando-se com uma cena um tanto quanto bizarra e inesperada: um alçapão, que até então parecia não existir naquele espaço, abriu-se violentamente em frente à estátua de ouro. Em volta do terreno ocupado pelo mausoléu, surgiram pessoas curiosas para ver o que havia acontecido -e curiosamente, a maioria era chinesa por algum motivo.
E então, finalmente, ocorreu o esperado.
Eu acordei.
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