Uma fagulha cruza o universo por uma era indefinida. Esta fagulha, azul e amarela, espoca nas mãos de Elohim. A fagulha luminosa se retorce e toma uma forma carnal, similar ao que viria a ser o homem. Elohim utiliza o planeta Terra para cultivar a vida. Ele cria um panteão chamado Egrégora. Para lá são enviados deuses de outras dimensões...
Elohim os abandona para todo o sempre.
Na floresta mais densa:
- Vento!
Devolva-me a carne. Oh servo da danação, que o fogo divino te cegue e
minha fé em Elohim esmague-o. Liberta-me, pois não tens o direito.
Terra não pode mover-se. Os galhos de uma árvore podre trespassam seus braços, penetrando na barriga e entrelaçando a espinha.
“Ronronar a revolta, renova a ruína, ruim, ruína, ruim e ruim. Ruma à relva, oh réu repugnante”.
O som gutural
escorre pela terra lodosa e enjoa os ouvidos com seu tom putrefato.
Vento encara o deus cativo, encurvado sobre uma pedra preto azeviche no
escopo da nascente de um rio.
No panteão Egrégora:
Água e Fogo observam a situação através das muralhas verdes de fumaça.
- Como pôde este demônio acumular tamanho poder em meio aos terrenos?
- Vento acumulou conhecimento da Natureza, bebendo na fonte ancestral. O que fazíamos neste ínterim?
- Mel, carneiros e ambrósia.
- Sim. E tu ainda sorris da onipresença, Fogo?
- Não tente o coloquial mundano em nossas moradas, Água. Deixe para Elohim e Terra, resolverem o entrave.
Luz adentra o salão. As muralhas de fumaça verde aumentam sua vazão e as imagens ficam nítidas.
- Olhe bem,
com tua visão destreinada. Aro perfeito de liga prateada é o teu olho,
Fogo. Só lhe concerne o imaginário tolo que inseriu na cabeça dos
mortais. Fúria abominável, deus sol, derrotado!
Corado e nervoso, Fogo afastou Água de seu lado e afundou a face quadrada na fumaça.
Na floresta mais densa:
- Rutila a revoada. Rosto roto. Reclamo o receptáculo.
- Elohim não
permitirá que uma força demoníaca desnorteie a humanidade e aqui estou,
pelos deuses do panteão, para frear tua gana.
- Ralha-te ruminante.
Vento dissolve seu corpo sobre a pedra preto-azeviche. Um aroma de eucalipto envolve o lugar.
No panteão Egrégora:
Fogo balança a cabeça de forma negativa. Joga o corpo em um pequeno monte de plumas.
- Bobagem a contenda. Aquele ser não tem forças para nada. A figura do diabo é mais interessante que aquele porco feito de ar.
- O conhecimento que leio naquele ser é mais vasto do que o nosso.
- Terra é um
humano com regalias de um deus. Confiei-lhe a missão de deter Vento.
Você está certo Água, o conhecimento alimentou o poder de seu irmão.
Um estrondo percorre o salão e pelas cortinas de cetim passam Tempo e Espirito de braços dados.
- Luz, seu velho! Abra logo as palavras para o expansivo Fogo.
- Não passam de enfeite, esquecidos até pelos terrenos.
- Fogo... Há uma década, Água encontrou a Rosa dos Ventos. Estava nas mãos de Vento.
Fogo ergueu-se sobressaltado. As plumas chamuscadas, voaram ao seu redor.
- Pilhéria,
meu irmão. O inferno não pode conter a língua traiçoeira de Água. A Rosa
dos Ventos foi-se com aquele vexame do Mar Morto.
Ao redor do mundo:
Direita
Um
carro permanece, boa parte da manhã, engripado no poste. O resgate já
conduziu o motorista acidentado ao hospital mais próximo. O guarda de
transito desvia o fluxo de veículos para uma rua adjacente. Donas de
casa preparam doces de amêndoas seguindo a receita dada na televisão.
Esquerda
Seguem
os protestos na praça em frente à sede do governo. O bloco de pessoas
entoa canções de cunho político. Apinham-se cartazes com mensagens
sociais imperativas. Na segunda investida do batalhão de choque, os
revoltosos são por fim dispersos. A contenção progride em direção ao
rio, em meio a pau e pedras. Os contidos dão ré, em meio a gás e
borracha. Um pedreiro coça sua cabeça ao observar o erro de medida na
junção de duas paredes.
Cima
Numa
plataforma, o monitor repassa instruções de como proceder para um salto
bem sucedido. Mas uma das garotas chora compulsivamente. Talvez o salto
seja cancelado. Uma jovem executiva dobra a barra de seu vestido
enquanto aguarda um café expresso da maquina nova.
Baixo
Para
levar o cervo abatido até a vila, três homens se prontificam. O caminho
menos tortuoso é pelo rio. O bote é antigo, mas agüenta, em seu limite,
o peso de todos. A cabeça do cervo segue submersa na água.
No panteão Egrégora:
Luz acaricia
um globo espelhado. O sol reflete a manta de ouro que adorna seu corpo.
Harpas flutuantes ressoam ao redor. Som derruba os instrumentos no chão e
se ajoelha ao lado de Luz.
- Está certo da posse da Rosa dos Ventos? Água me contou os problemas recentes, entes, entes.
- Foi vista através da muralha de fumaça. Vento a manuseia todas as noites. Está aprendendo os mecanismos.
- Mas a peça é
gigantesca. A própria Natureza a cunhou antes de entrar em transe. O
querido Vento está fora de eixo. Que farei sem ele, ele, ele?
- Demônio esfolado do abismo de Furfur. Vaga no planeta desde o sempre. Nunca se deu o trabalho de pisar aqui em Egrégora.
- Ouço seu
resmungo rouco. Terra está preso em seu próprio Elemental. Natureza
poderia salvar sua forma humana daqueles galhos, galhos, galhos.
- A folha da floresta goteja uma seiva em seu dorso. Só o Tempo responde quando se livrará.
Tempo surge sem sua face na frente de Luz e Som.
- Digo que não
tenho mais passagem a responder. Agora, antes ou depois. Espírito
sentiu o limite há pouco. A última trava da Rosa dos Ventos foi
deslocada por Vento.
- Baixo ente.
Com ele não quero ter. Elohim deixou-nos a Rosa como sendo a guia de
direções para os humanos. A mim, me corroeu por todo o sempre a
curiosidade de saber o que aconteceria se a última trava direcional
fosse deslocada. Mas o ato em si, gera temor.
Estalos
ribombam do raio que hachura o céu. A pele de Luz retesa como a de um
velho no frio. Fogo corre em direção à muralha verde de fumaça.
- A Rosa dos Ventos foi acionada!
Espírito encarna o corpo de Som.
- Você fala em temor, seu patético. Tu és um deus. Que são os humanos?
- Lunáticos, sim eles são, Espírito.
Água escorreu temeroso pelo piso de prata.
- Não
subestimem a humanidade. Acontece agora uma catarse no planeta. Eles
estão descobrindo a nova direção liberada por Vento. Vão vir todos nos
visitar? Preparem-se.
- Espírito? Olhe minhas chamas. Ceifarei muitas vidas que aqui ousarem chegar.
Ao redor do mundo:
Direita
A aeronave, com duzentos passageiros, inclinou suas asas para baixo.
- Já vamos pousar?
- Não, não. Creio que não. Mal deixamos o aeroporto.
- Mas eu queria mesmo mudar. Ir para lá. O que você acha?
Esquerda
- Queridos, hoje vamos numa excursão.
- Professora, nós vamos para lá?
- Vamos sim... Por aqui, para lá.
Cima
Dois amigos conversam nas areias de uma praia.
- E é por isso que eu chamei a Carla para morar no meu apartamento.
- Sabe que penso agora, numa consciência de estar aqui e existir no mundo? Poderíamos...
- Ir pra lá? Vou ligar para a Carla quando chegarmos.
E os dois se juntaram a uma pequena turma de pescadores.
Baixo
Um comboio do exército sai de uma estrada esburacada na mata.
- E dá uma vontade, senhor, de metralhar qualquer um que não deixar a gente fazer um reconhecimento. Entende?
- É o que todo desbravador faz quando se move para lá, soldado.
No panteão Egrégora:
- Rompante risonho, revela revolta!
Vento percorre de uma ponta a outra a Egrégora.
- Já é tarde,
Vento. Tarde para censurarmos seus atos. Tarde para desfazer a percepção
dos homens. Brinque à vontade. Aguardemos a chegada de todos. É o
momento de uma nova hierofania.
- É engraçado.
Vejo as primeiras pessoas avançando nas novas terras. Qual poderia
imaginar que além da direita, da esquerda, frente e atrás, baixo e cima,
poderia ocultar-se uma direção completamente diferente? Pudera eu que
tudo sei, ainda ter estas surpresas.
- Não, Espírito. Ainda pode se surpreender. Veja quem chega antes por nossas portas.
Terra passa
por todos, sujando de lodo o caminho. Vento o encara com um sorriso
aberto. Terra zune uma espada no ar e a crava no peito de Vento.
- Ele sangra! Oh Elohim, que mal foi liberado em ter alterado a Rosa dos Ventos?
Água abraçou Terra e cochichou em seu ouvido:
- Somos humanos, enfim?
- Foi o preço da catarse humana.
Os deuses
debulham-se em lágrimas, desorientados pela Egregóra. Clamando pela
força criadora maior, silenciosa em sua eternidade.
- Elohim, Elohim. Onde está tua força?
Uma nova direção:
- Olhe aquelas pessoas, filha. Parecem perdidas e confusas.
- Papai... Já que chegamos até aqui, que é lá, antes, quando havíamos partido, podemos fazer o que quisermos?
- Eu também me sinto estranho, filha. Mas eu tenho uma arma.
- Se o senhor tem uma arma é melhor começar a usar. O brutamonte de rosto quadrado está vindo com tudo na nossa direção.
- Permissão para abater a ameaça senhor.
- Deus! De onde surgiu aquele carniceiro?
- Ele veio... Aparentemente... De lá, senhor.
- Elimine o alvo, soldado. Vamos civilizar esta bela região. Há muito a se fazer.
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