Já
sugeri por aqui: Edward Snowden poderia ser personagem de livro de
William Gibson. Acrescento agora: nossa história atual deve estar sendo
escrita por J. G. Ballard, que — como Elvis — não morreu e sim conseguiu
acesso à sala secreta de controle da realidade. Leia qualquer parágrafo
de “Terroristas do milênio”, seu penúltimo livro (lançado no Brasil em
2005 pela Companhia das Letras). Tudo parece notícia do jornal de hoje.
Por exemplo: David Markham, o psicólogo narrador, anda pelas ruas de
Marina Chelsea, condomínio ficcional da alta classe média londrina, e vê
um princípio de confusão na porta da administração. Pergunta para Kay
Churchill, “docente de estudos cinematográficos” (apartamento com
cartazes de Ozu e Bresson), o que está acontecendo: “Algum pedófico
solto na vizinhaça?” A resposta de Kay: “Tarifa de estacionamento.
Acredite em mim, a próxima revolução será por causa do estacionamento.” O
capítulo termina assim: “Na época, achei que era brincadeira dela.”
A
brincadeira virou grande revolta pós-popular (lemos em várias páginas:
“a classe média é o novo proletariado”; “Qualquer pessoa que ganhe menos
de trezentas mil libras anuais não conta. Você não passa de um proleta
de terno”; “um computador no Banco Central decide que a taxa de juros
deve subir um ponto e eu fico devendo ao gerente do banco mais um ano de
trabalho”; “as qualificações profissionais não valem mais nada — uma
pós-graduação em arte equivale a um diploma em origami”), descrita com
detalhes sempre pitorescos, mas cada vez mais familiares: “cirurgiões e
corretores de seguros, arquitetos e gerentes de planos de saúde haviam
erguido barricadas e virado seus próprios carros para bloquear a
passagem dos carros de bombeiros e equipes de resgate que tentavam
salvá-los.” Ou então: “fizeram fogueira com livros e quadros, brinquedos
educativos” e recebiam a polícia com chuvas de pedras (“carinhosamente
apanhadas nas ilhas Seychelles ou Maurício”). Depois passaram a jogar
bombas de fumaça na praça de alimentação da Selfridge’s ou no setor de
dinossauros do Museu de História Natural. Um guarda morreu na Tate
Modern tentando salvar obra de Damien Hirst. Tudo era enigma para as
autoridades: “Recusaram ofertas de ajuda, negando-se a manifestar suas
queixas, e até mesmo a revelar se tinham alguma queixa, afinal de
contas.”
Na verdade, era uma gente normal (“um
comerciante de antiguidades”, “dois casais de lésbicas”, “um piloto de
Concorde alcoólatra”) que tinha — além da “sensibilidade cultural” que
“lhes conferia uma superioridade moral negada a torcedores de futebol ou
a amantes de anões de jardim” — um amontoado de queixas contra o Banco
Mundial, as exposições de gatos (“um campo de concentração”), o consumo,
o turismo (“Todos os upgrades da vida levam aos mesmos aeroportos e
resorts, à mesma cascata de piña colada. O turista sorri bronzeado,
mostra os dentes brancos e pensa que é feliz. Mas o bronzeado oculta o
que realmente são — escravos do salário com a cabeça cheia de lixo
americano”), os transgênicos: “Dificilmente haveria atividade humana que
não servisse de alvo a um grupo disposto a passar o fim de semana
fazendo piquete em laboratórios, bancos comerciais e depósitos de
combustível atômico, percorrendo caminhos enlameados para defender o
ninho de um texugo, deitando no meio da rodovia para impedir a passagem
do inimigo jurado de todos os manifestantes, o motor de combustão
interna.” Isso tudo poderia ser resumido em tema para manual de
autoajuda — “o anseio desesperado por um mundo com algum significado” —
ou por declaração mais panfletária: “Cansamos de ser considerados
passivos. Cansamos de ser usados. Não gostamos do tipo de gente que nos
tornamos.”
O líder da revolta, o pediatra Richard
Gould, é menos ingênuo, mas bem mais doido, e não dá importância ao que
pode acontecer com os habitantes de Marina Chelsea: “O protesto da
classe média não passa de um sintoma. (...) Há uma necessidade imperiosa
de atos absurdos, quanto mais violentos, melhor.” Sua conclusão: “Um
ato sem motivação detém o movimento do universo.” Nisso Gould é parente
de outro doutor ballardiano, o psiquiatra Wilder Penrose do romance
“Super-Cannes”, que inventou terapia para os executivos super-ricos que
moram em um condomínio da Riviera francesa: noitadas de violência
física/sexual contra imigrantes pobres. “Microdoses” de psicopatia, ou
“loucura gratuita”, para relaxar tensões provocadas por uma teoria
sombria da natureza humana (seríamos caçadores sedentos de sangue
aprisionados numa opressiva civilização agrícola). Que Ballard — de onde
ele estiver — invente uma trama esperta para nos salvar deste beleléu
profundo.
Fonte: O Globo